sexta-feira, 22 de abril de 2011

DEZASSEIS

Por Madalena S.

Levantou-se agora mesmo uma brisa lilás
Que me soprou a cinza dos olhos e me mostrou,
Na clara clarividência da manhã,
O futuro dos dias apagados pelo morrer das ondas na areia húmida.
Caminhei descalça sobre o chão marcado a peso de ouro
E balancei-me perigosamente
sobre o abismo das marés profundas,
Perguntando a toda a gente
onde estaria o fim dos tempos.
Ninguém me respondeu.
Por fim muda, voltei para trás e fechei a porta.

domingo, 21 de novembro de 2010

QUINZE

Por Madalena S.

Escorreste-me dos olhos como ambrósia olímpica, confundindo a doçura do mel divino com o sal do pranto humano. Provocaste o caos.
Decalcaste as trevas sobre papel milimétrico, debuxadas a tinta-da-china, sem régua, nem esquadro, nem compasso. A olho, como os Deuses planearam o universo.
Por isso o mar está a subir, vertiginosamente, até nos entontecer a todos nessa espiral contínua que intenta ligar a terra e os céus, numa linha única, uma recta infinita com um nó na ponta, corrediço e mortal e que, um a um, nos puxará para a luz.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

CATORZE

Por Madalena S.

Quando te miro o fundo dos olhos
Quietos e cristalinos quais contas de vidro
Vejo o passar dos instantes.
Solenes como um Requiem.
E, em cada dia, todos os dias do tempo inteiro.
Daquele tempo demasiado lúcido para o perceber como o tempo da paixão.
Não há lucidez na paixão.
Não há paixão na lucidez.
Sejamos apaixonados.

domingo, 27 de junho de 2010

TREZE

Por Madalena S.

Breves
As palavras escorrem
E resvalam pela humidade dos sentidos.
Por um instante fugaz
Roçamos a perfeição.

DOZE

Por Madalena S.

Inventei-te ontem à tarde, a tempo de te deitares comigo, como se a companhia me fizesse falta.
Não fazia.
Teria passado bem sem ti, sem o teu cheiro a charuto húmido, e os teus dedos amarelos de nicotina a fugir sobre as teclas do piano, correndo em direcção à cauda, porque é de lá que vem o melhor som.
Teria passado bem sem o teu amargo de boca, mastigado sobre o sabor acre do rum velho que te queima a goela magra e te escorre pelo canto dos lábios, num lastimável fio de abandono.
Teria passado bem sem as tuas recordações de Havana velha, do cadillac de estofos vermelhos e das rameiras escuras a rabearem as garupas no Tropicana.
Teria passado bem sem ti e sem a revolução, sem os tiros e as barricadas.
Mas, nesse caso, quem me cantaria a Internacional?

sábado, 12 de junho de 2010

ONZE

Por Madalena S.

Uma pedrinha…
Duas pedrinhas…
Três pedrinhas…
À quadragésima sexta pedrinha já tinha o saco cheio e o peso deslocava-me a coluna e provocava-me escoliose.
O médico prescreveu-me fisioterapia e proibiu-me terminantemente de apanhar pedrinhas.
Quanto muito, para matar o vício, disse-me que podia apanhar uma ou outra pedrada.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

DEZ

Por Madalena S.

Caminho pelas ruas da amargura.
Nas pedras da calçada – salve a alma portuguesa! - em esquiços de negro basalto, revejo a tristeza dos meus fados. Do meu fado.
Na dobra da rua, no sopé das escadinhas, mirando o elevador que sobe e desce em canseira arfante, o homem das castanhas atiça as brasas do seu fogareiro de barro e grita – Quentes e boas! – e eu cobiço os climas pardos do Outono e continuo a caminhar pelas ruas da amargura.
Não há tempo para lavar os olhos, fechados pelo pó dos dias.
Não há tempo para perfumar as mãos, ásperas de esfregar as paredes nuas da consciência.
Não há tempo para sentir.
Cresce a amargura nas ruas e eu caminho cada vez mais depressa.

NOVE

Por Madalena S.

No final dos tempos seremos um só.
Até lá, teremos de puxar pela cabeça e inventar modos de nos suportarmos, como se o mundo nos achasse graça, assim tão rugosos e sem pelo, tão leves de espírito e grandiosos na passagem pela vida.
No final dos tempos seremos um só.
Mas antes, vamos digladiar-nos, e envenenar-nos com a cicuta mais amarga no fel de todos os dias, e atirar coisas à cabeça um do outro ao estilo do melhor cinema do neo-realismo italiano.
De Sica e Magnani. A preto e branco, que as cores têm vindo a fenecer e a desbotar as nossas almas.
Porém, no final dos tempos seremos um só.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

OITO

Por Madalena S.

Cheirava a jasmim todos os dias. O odor forte confundia-nos os sentidos.
Sobravam aromas e as folhas das acácias forravam o chão que tu pisavas.
Sobre o húmus macio caía – em lágrimas – a chuva fresca da Primavera.
Ensopava os torrões de terra escura e crescia em rios transbordantes das margens.
E na água lamacenta que arrastava em si os restos podres das florestas magoadas
Apagávamos o fogo lento da paixão
E renascíamos, frescos e libertos,
Como se o banho assim tomado lavasse as nódoas de vidas passadas
E renomeasse o pecado original.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

SETE

Por Madalena S.

A nossa casa não tem portas nem janelas.
É aberta
Às correntes de ar permanentes
Ao gelo de Janeiro
Ao fogo de Agosto
À vaidade do arquitecto que riscou as paredes-mestras
À perfeição do pedreiro que argamassou os tijolos
À arte do canteiro que cantou a chaminé em rochedo de granito

A nossa casa não tem portas nem janelas

Para que o ar límpido das manhãs de inverno possa atravessá-la
Sem intervalos.

A nossa casa é tão perfeita que induz a cobiça dos vizinhos.
Por causa disso mandei pintá-la de amarelo.

SEIS

Por Madalena S.

Lembras-te da sombra dos rododendros e do perfume gordo dos jasmins que nos asfixiavam os sentidos nas tardes amarelas de Agosto?
Sobre as águas paradas do lago quieto e escuro,
as louva-a-deus batendo as asas, frenéticas, enlouquecidas, enganando o desalento, pairavam assim.
As louva-a-deus batendo as asas, sobre as águas paradas do lago quieto e escuro.
E as rãs coaxavam roucas, arriscando abafar o canto grave das cigarras.
Ficávamos cegos.
Os olhos fechados, as mãos entrelaçadas, o pulso suspenso.
À nossa volta ouvia-se o silvo supremo do Universo.

domingo, 5 de abril de 2009

CINCO

Por Madalena S.

Era sobre a madrugada que o sonho me chegava embrulhado na luz opiácea daquele instante único entre o breu e a claridade.
Afogada em pecado mortal, chamava por ti e por todos os outros que um dia caminharam ao meu lado, errantes e errados, amantes e amados.
Ninguém vinha.
No vazio do hall de entrada, sob o lustre antigo que tem duas lâmpadas fundidas e um pingente partido, interrompia-me, estática, nua e roxa, à espera do apocalipse anunciado pelo negro dos corvos que voavam em círculos acima do mundo.
Como o apocalipse tardava, desatava os nós dos reposteiros, deixava entrar a mansidão do entardecer e sentava-me na otomana de veludo carmesim a tomar chá, com scones e compota de ruibarbo.
Em suspiros, iam aparecendo os fantasmas, sombras de sempre, companheiros a compasso no passo a passo dos dias perpétuos.
Percorríamos o resto do tempo a jogar canasta e a fazer paciências.

terça-feira, 24 de março de 2009

QUATRO

Por Madalena S.

Quando a eternidade se concretizar, seremos finalmente felizes.
Por agora falta-nos tempo.
Perdemo-nos num minuto nas lavas incandescentes do sol e encontramo-nos a cada três mil e vinte e sete anos-luz de distância, numa galáxia próxima do caos.
Alimentamos a insónia como animal de estimação, para ela nos lamber o corpo moído na escuridão das noites sem princípio nem fim.
Mas registe-se a nossa passagem por aqui.
Chegámos há uns instantes e estamos já de partida. Por absoluta falta de tempo.

domingo, 22 de março de 2009

TRÊS

Por Madalena S.

Tomei a decisão de que havemos de ser gloriosamente eternos.
Mesmo quando o tempo tiver curtido as nossas peles duras a um ponto tão insustentável que qualquer pequeno sopro de ar nos possa arrancar as rugas e deslocar os olhos para uma outra área do rosto ainda ignorada, havemos de assumir a eternidade.
Sentamo-nos, aprazíveis, nas cadeirinhas de praia, esfregando a artrite com óleo de cânfora, apaixonados por nós e por esses odores da velhice abençoada pelo amor.
E se nos perguntarem porque é que não morremos, simplesmente responderemos que é porque não queremos.

sábado, 21 de março de 2009

DOIS

Por Madalena S.

Acabei por sentar-me à mesa a saborear o azul-escuro da noite.
Não que tivesse fome ou vontade de comer mas lembrei-me de que o meu pai dizia “o comer e o coçar, tudo está no começar”.
Cocei-me devagar, com método, com rigor, arrancando as crostazinhas das borbulhas empoladas pelo calor e deixando a pele em carne viva em certas partes mais expostas do meu corpo coberto de escamas.
Fui debicando nos mirtilos amontoados na taça de vidro de Murano que comprámos no último dia da viagem de finalistas, eternos apaixonados naquele inverno em Veneza.
Já sobre a madrugada, abri uma garrafa de verdadeiro champanhe, com acentuado sotaque francês, e reguei com ele as begónias que cantavam à janela do escritório. Loucas, as begónias redobraram a cantoria até te acordarem. Vieste ajudar-me a acabar com os mirtilos.
Lá fora, começava o azul claro do dia.

domingo, 15 de março de 2009

UM

Por Madalena S.


Era de noite e choviam astros.
Um dilúvio de luz em fragmentos, desabando do universo sobre o quintal das traseiras, queimando as ervas aromáticas e reduzindo a cinzas as abóboras meninas que viçavam a contragosto à beira do morangal vermelho escuro.
Ainda tentaste apanhar dois pedaços da Nebulosa da Águia que caíram aos pés do limoeiro e um estilhaço de uma supernova vinda de parte incerta, mas o brilho sofisticado e absurdo queimou-te as pontas dos dedos e voltaste para trás.
Sentámo-nos no alpendre, enrolados na manta de retalhos costurada pela avó Maria, e ficámos ali a assistir ao nascimento do mundo.

sexta-feira, 13 de março de 2009

ZERO

Por Madalena S.

Ontem subi os degraus desta miséria, dois a dois, numa pressa exagerada de chegar ao cimo, de me despir das roupas magras vestidas em segunda ou terceira mão, que quantas mais mãos houvesse mais vezes elas passariam de umas para as outras e mais magras se tornariam.
Subi os cinco pisos, sem elevador, até às águas furtadas à vida, em assalto sem mão armada que as mãos não aguentam o peso da arma.
E depois de lá chegar, pensei que não valera a pena o esforço, que a morte iria sempre comer-me o que me restava de carnes e chupar-me todos os ossinhos, do fémur gigante às mais frágeis falangetas, estivesse eu escondida onde estivesse, sob os crepes pesados dos lutos ou os etéreos tules de noiva, dentro de baús de ébano ou exposta em cima da mesa do centro, qual chinoiserie de autêntico Sacavém que tu depois atirarias contra a parede desfazendo-a em cacos mil, como as chuvas de Abril.
E não estava lá ninguém para varrer os restos.
Sentei-me à porta, a mastigar o vazio amargo da solidão, sorvendo o ar por entre os soluços do esgotamento e afagando o gato vadio que entra todas as noites pela clarabóia e vem agasalhar-se no canto do parapeito. O bichano miou, felino e dengoso, lambendo os bigodes satisfeito.
E eu pensei que o céu nunca seria mais do que isto: um animal afortunado, preso numa armadilha de afectos mas livre de viajar sobre os telhados.