terça-feira, 24 de março de 2009

QUATRO

Por Madalena S.

Quando a eternidade se concretizar, seremos finalmente felizes.
Por agora falta-nos tempo.
Perdemo-nos num minuto nas lavas incandescentes do sol e encontramo-nos a cada três mil e vinte e sete anos-luz de distância, numa galáxia próxima do caos.
Alimentamos a insónia como animal de estimação, para ela nos lamber o corpo moído na escuridão das noites sem princípio nem fim.
Mas registe-se a nossa passagem por aqui.
Chegámos há uns instantes e estamos já de partida. Por absoluta falta de tempo.

domingo, 22 de março de 2009

TRÊS

Por Madalena S.

Tomei a decisão de que havemos de ser gloriosamente eternos.
Mesmo quando o tempo tiver curtido as nossas peles duras a um ponto tão insustentável que qualquer pequeno sopro de ar nos possa arrancar as rugas e deslocar os olhos para uma outra área do rosto ainda ignorada, havemos de assumir a eternidade.
Sentamo-nos, aprazíveis, nas cadeirinhas de praia, esfregando a artrite com óleo de cânfora, apaixonados por nós e por esses odores da velhice abençoada pelo amor.
E se nos perguntarem porque é que não morremos, simplesmente responderemos que é porque não queremos.

sábado, 21 de março de 2009

DOIS

Por Madalena S.

Acabei por sentar-me à mesa a saborear o azul-escuro da noite.
Não que tivesse fome ou vontade de comer mas lembrei-me de que o meu pai dizia “o comer e o coçar, tudo está no começar”.
Cocei-me devagar, com método, com rigor, arrancando as crostazinhas das borbulhas empoladas pelo calor e deixando a pele em carne viva em certas partes mais expostas do meu corpo coberto de escamas.
Fui debicando nos mirtilos amontoados na taça de vidro de Murano que comprámos no último dia da viagem de finalistas, eternos apaixonados naquele inverno em Veneza.
Já sobre a madrugada, abri uma garrafa de verdadeiro champanhe, com acentuado sotaque francês, e reguei com ele as begónias que cantavam à janela do escritório. Loucas, as begónias redobraram a cantoria até te acordarem. Vieste ajudar-me a acabar com os mirtilos.
Lá fora, começava o azul claro do dia.

domingo, 15 de março de 2009

UM

Por Madalena S.


Era de noite e choviam astros.
Um dilúvio de luz em fragmentos, desabando do universo sobre o quintal das traseiras, queimando as ervas aromáticas e reduzindo a cinzas as abóboras meninas que viçavam a contragosto à beira do morangal vermelho escuro.
Ainda tentaste apanhar dois pedaços da Nebulosa da Águia que caíram aos pés do limoeiro e um estilhaço de uma supernova vinda de parte incerta, mas o brilho sofisticado e absurdo queimou-te as pontas dos dedos e voltaste para trás.
Sentámo-nos no alpendre, enrolados na manta de retalhos costurada pela avó Maria, e ficámos ali a assistir ao nascimento do mundo.

sexta-feira, 13 de março de 2009

ZERO

Por Madalena S.

Ontem subi os degraus desta miséria, dois a dois, numa pressa exagerada de chegar ao cimo, de me despir das roupas magras vestidas em segunda ou terceira mão, que quantas mais mãos houvesse mais vezes elas passariam de umas para as outras e mais magras se tornariam.
Subi os cinco pisos, sem elevador, até às águas furtadas à vida, em assalto sem mão armada que as mãos não aguentam o peso da arma.
E depois de lá chegar, pensei que não valera a pena o esforço, que a morte iria sempre comer-me o que me restava de carnes e chupar-me todos os ossinhos, do fémur gigante às mais frágeis falangetas, estivesse eu escondida onde estivesse, sob os crepes pesados dos lutos ou os etéreos tules de noiva, dentro de baús de ébano ou exposta em cima da mesa do centro, qual chinoiserie de autêntico Sacavém que tu depois atirarias contra a parede desfazendo-a em cacos mil, como as chuvas de Abril.
E não estava lá ninguém para varrer os restos.
Sentei-me à porta, a mastigar o vazio amargo da solidão, sorvendo o ar por entre os soluços do esgotamento e afagando o gato vadio que entra todas as noites pela clarabóia e vem agasalhar-se no canto do parapeito. O bichano miou, felino e dengoso, lambendo os bigodes satisfeito.
E eu pensei que o céu nunca seria mais do que isto: um animal afortunado, preso numa armadilha de afectos mas livre de viajar sobre os telhados.