sexta-feira, 13 de março de 2009

ZERO

Por Madalena S.

Ontem subi os degraus desta miséria, dois a dois, numa pressa exagerada de chegar ao cimo, de me despir das roupas magras vestidas em segunda ou terceira mão, que quantas mais mãos houvesse mais vezes elas passariam de umas para as outras e mais magras se tornariam.
Subi os cinco pisos, sem elevador, até às águas furtadas à vida, em assalto sem mão armada que as mãos não aguentam o peso da arma.
E depois de lá chegar, pensei que não valera a pena o esforço, que a morte iria sempre comer-me o que me restava de carnes e chupar-me todos os ossinhos, do fémur gigante às mais frágeis falangetas, estivesse eu escondida onde estivesse, sob os crepes pesados dos lutos ou os etéreos tules de noiva, dentro de baús de ébano ou exposta em cima da mesa do centro, qual chinoiserie de autêntico Sacavém que tu depois atirarias contra a parede desfazendo-a em cacos mil, como as chuvas de Abril.
E não estava lá ninguém para varrer os restos.
Sentei-me à porta, a mastigar o vazio amargo da solidão, sorvendo o ar por entre os soluços do esgotamento e afagando o gato vadio que entra todas as noites pela clarabóia e vem agasalhar-se no canto do parapeito. O bichano miou, felino e dengoso, lambendo os bigodes satisfeito.
E eu pensei que o céu nunca seria mais do que isto: um animal afortunado, preso numa armadilha de afectos mas livre de viajar sobre os telhados.

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